Senhores passageiros

José Artur Castilho
6 min readJan 21, 2019
#FotoAcessível: Interior de um ônibus. Os bancos, de cor lilás, estão todos vazios. Há apenas uma pessoa sentada, ela veste casaco e uma touca.

Em pé, Robson.

— Bom dia, senhores passageiros.

— Bom dia. — uma ou duas vozes responderam.

O sol não pediu licença, adentrou pelas janelas do lado esquerdo do ônibus e obrigou algumas pessoas a trocar de lugar. Falar em público não era a melhor das habilidades do rapaz franzino que confrontava cada corpo humano sentado diante dele.

Suas mãos não ousavam suar, as palavras não lhe ousavam sumir da mente. A maior das ousadias ele já o fizera, ao se por em pé sem a permissão dos seus senhores.

— Meu nome é Robson e eu tenho dezenove anos. — sua voz era engessada, quase mecânica — Nas mãos de vocês eu coloquei um adesivo.

Sentada, Diana.

Por um breve instante, a moça olhou para o pedaço de papel entregue a ela pelo rapaz. Sim, era de fato um adesivo com uma representação da Santa Ceia e algumas inscrições. Um número de telefone, o trecho de um salmo e algumas palavras abaixo do desenho de uma cruz. Casa de apoio “Vasos de Honra”.

Em pé, Robson.

— Desculpe o incômodo, mas eu não venho aqui no meu nome, não. Vocês hoje me veem aqui, bonito, elegante, conversando com vocês. — um riso amigável se formou no rosto de quem o ouvia — Se vocês me vissem há exatamente um ano atrás, eu era outra pessoa.

O ônibus passou por sobre uma lombada. Robson precisou se apoiar na barra de ferro ao seu lado.

— Há um ano, senhores, eu era mais um desses pivetes que tão aí na rua. Eu roubava, eu batia, eu matava. Tudo por causa de pedra.

Sentada, Diana.

Seus olhos se arregalaram diante das últimas frases ditas pelo jovem à sua frente. Despediu-se da amiga com uma mensagem apressada antes de guardar o celular no fundo falso da bolsa e escondê-lo com a ajuda de um livro da faculdade. Tratado de Imunologia.

— Aqui, senhores. — levantou a camisa para mostrar a cicatriz profunda no exato centro do seu peito — Aqui a marca do dia que eu quase morri na mão do tráfico. Isso aqui, senhores, é uma marca de uma ponto 38. O médico falou que eu não tinha chance.

Diana também tinha dezenove anos. Há um ano, comemorava o ingresso na faculdade de biomedicina. Muita cerveja, tinta pelo corpo, beijos, papel de seda, música até o amanhecer.

O rapaz escondeu a cicatriz novamente e ergueu a pequena bíblia sagrada que trazia na mão.

— Mas eu tô aqui. E se eu tô aqui é por causa em primeiro lugar de Jesus Cristo. E Jesus só se revelou pra mim quando a minha mãe pegou um adesivo desses e ligou desesperada pra casa do pastor Jean Carlos.

Se visse Robson em uma calçada qualquer, Diana atravessaria. Agiria do mesmo modo que fizera na semana anterior, quando passou por dois rapazes montados em uma bicicleta e reduziu a velocidade dos passos até que eles se afastassem. Recomendações que um dia foram de sua mãe e há tempos já estavam cristalizadas em seu interior.

— Hoje, senhores, a Vasos de Honra abriga mais de cem cidadãos em situação de vício em álcool e drogas. São cem famílias salvas. Tudo isso é sustentado com a venda desses adesivos que eu entreguei pra cada um de vocês.

O adesivo. A moça o olhou mais uma vez antes de voltar sua atenção à voz do homem que falava. A imagem da cicatriz pungia em sua mente. Não se leva um tiro no peito por acaso, o que ele havia feito para merecer?

Merecer.

Aos dezenove anos, não era dona de muitas coisas, mas acumulava boas conquistas. Todas suas, pessoais e intransferíveis. O estágio remunerado a permitiu comprar alguns itens necessários para o curso, como o jaleco que levava dentro da bolsa e os instrumentos individuais de laboratório. Dali a dois meses, o celular estaria quitado e os itens de urgência comprados com o cartão de crédito também. Tudo o que era seu estava arquitetado em uma planilha minuciosa de gastos mensais. Na universidade você vai se tornar adulta, eles disseram.

Diana tinha planos de encerrar a graduação e tentar a sorte no tal mestrado que seu orientador sempre falava. “Você tem potencial, Diana”, “Você tem perfil”, “Poucos alunos escrevem artigos durante a graduação e você conseguiu publicar numa A2”. Aos dezenove anos.

Aos dezenove anos, Robson. Em pé.

— Esse adesivo tá saindo pela quantia de dois reais. Com dois reais, você ajuda a manter esse projeto. A gente não tem ajuda de governo, a gente não tem ajuda de deputado, de vereador, de nada. É só Deus no nosso caminho.

O rapaz estava acostumado a todo tipo de olhar. Sobre sua pele eram depositadas camadas de medo, repulsa e pena, mas principalmente de indiferença. Antes dele, Dejair vendeu canetas e portas-documentos. No ônibus ao lado, Rose vendia amendoim. Algumas horas depois, Fernando embarcaria naquele mesmo veículo para vender trufas de chocolate. Por mais que se destacasse, por mais que ousasse falar, ele era só mais um corpo em pé.

— Deus é tão maravilhoso que nunca deixou faltar nada na nossa casa. Então, senhores, com a licença de vocês eu vou fazer uma oração pra cada um nesse coletivo.

Robson elevou a mão esquerda, o tom de sua voz se fortaleceu.

— Senhor Deus, derrama sobre nós a Tua benção, que cada pessoa presente nesse coletivo tenha um dia seguro. Não permita, Senhor, que nenhum homem e nenhuma mulher precise enfrentar a violência dessa cidade, que só cresce mais a cada dia.

Ele acreditava profundamente em cada palavra dita. Diana olhou para os lados e notou que alguns passageiros fecharam os olhos. Eles também acreditavam.

— Guarda a vida e a família de todos, Pai. Que os filhos e filhas de cada um aqui não encontrem o caminho das drogas. Mas seja feita a Tua vontade, Senhor, e não a minha. Amém. — voltou à sua posição original, a voz novamente se engessou — Amém, pessoal?

— Amém. — as mesmas duas vozes o responderam.

A fé nunca tocou Diana do mesmo modo que tocava outras pessoas. Ela não sabia se acreditava na existência de um Deus, não naquele Deus, não daquela forma. A criação cristã não a impediu de se desligar da religião tão logo se tornou adolescente. Ela se lembrou de que já não rezava há muito tempo e desaprendera a maioria das orações que um dia soube de cor.

A despeito disso, a fé dos outros a fascinava. Lembrava-se dos cultos, de pessoas chorando, de pessoas cantando a plenos pulmões, de pessoas transparecendo em seus rostos a presença divina que ela mesma nunca foi capaz de sentir.

Em pé, Robson.

Onde ele falhou? Quantas lágrimas sua mãe verteu antes que ele finalmente encontrasse a tal casa de apoio? Quantos objetos roubados e vendidos passaram por suas mãos? Quantas vidas se perderam sob seu gatilho? Eram trabalhadores? Outros bandidos? Mereciam ou não?

Merecer.

Algo gritava no peito e na mente de Diana que seus dezenove anos e os dezenove anos de Robson foram e seriam completamente diferentes. Diferentes em corpo e em cor. Diferentes no peito. Diferentes em pesos e em balanças. Diferentes em ato, forma e destino.

Sentada, Diana. Resumida em sua baia, diminuída em seu assento. Sentiu-se ínfima.

A ansiedade a atacara na semana anterior e ela relutava em agendar uma nova consulta com o psicólogo do campus. Era só a semana de provas, as leituras que faltavam, as correções do artigo aceito na revista A2. Nunca está bom. Sacrifícios eram necessários em nome do seu projeto de vida. Pessoas crescem pela dor, eles disseram.

Seriam menores também as suas dores? Não. O psicólogo do campus lhe disse que as tristezas são equivalentes. Não era o que as cicatrizes de Robson lhe afirmavam. Pareciam doer mais e melhor.

— Com licença.

— Oi?

— O adesivo.

Em pé, Robson. Ela pôde olhar de perto o rosto do rapaz. Ele já não parecia ter dezenove anos.

— A senhora vai comprar?

No bolso da calça jeans, uma cédula de cinco reais. A jovem a tocou e experimentou uma sensação que até então lhe passara despercebida: poder.

Um poder raso e transitório, mas ainda assim um poder. Concentrada naquele pedaço amassado de papel, uma força que pautou toda a sua existência e toda a existência de Robson até aquele instante. A mesma força perfurou o corpo do homem e pagou as garrafas de vodka bebidas durante o trote da mulher na faculdade.

Entre os dedos de Diana, cinco reais e cem famílias salvas. A mãe de Robson e as mães que Robson fez chorar. Por que também ele não se apequenava? Ou ele já era pequeno demais e só agora ela havia notado? Livrou-se do poder.

— Só um segundo que eu já lhe dou seu troco.

— Não, tudo bem. Eu desço no próximo ponto, pode ficar.

Em pé, Diana.

Em pé, Robson.

— Muito obrigado, mas não precisa. — um punhado de moedas voltou à mão da moça.

O leve apito solicitou parada na estação seguinte. Antes do desembarque, uma inesperada troca de olhar entre iguais.

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José Artur Castilho

Leio nas horas que me restam e escrevo sempre que me sinto muito sozinho.