Sobre culpas e outras jaulas

José Artur Castilho
6 min readJan 15, 2019
Descrição: Videoclipe da música “Somewhere only we know”, da banda Keane.

Não estavam completamente sós. Outras almas condenadas por seus crimes dividiam aquele espaço minúsculo no qual mal cabiam suas camas junto de suas culpas.

A culpa pode ser um poderoso instrumento de dominação de uma pessoa sobre a outra. Creio que só perca para o dinheiro — e não raras são as vezes em que estas forças se misturam. É com o intenso e ininterrupto trabalho de assimilação da culpa que nos tornamos as pessoas subservientes que devemos ser para manter em ordem as engrenagens da vida em sociedade. Quando crianças, somos punidos por coisas que não deveríamos fazer, pensamentos que não deveríamos externar, lugares que não deveríamos tocar. Ou paramos de fazer tais coisas, ou as fazemos escondidos.

Quem primeiro nos ensina a culpa são os nossos pais. Vizinhos, parentes, professores e amigos de escola também contribuem com pressões sociais em diferentes níveis e momentos. Graduamo-nos nesta ciência quando nós mesmos passamos a nos punir e a nos culpar. Pode acontecer mais cedo ou mais tarde, mas vai acontecer.

Essa culpa particular é sempre grande e corpulenta e vem sob o verniz das responsabilidades que precisamos assumir conforme crescemos. A vida adulta é apenas um tempero que desperta e torna mais forte o sabor de dívida que fica na nossa boca.

Tenho pensado muito sobre a culpa nos últimos tempos, por inúmeras razões. Quando sua vida gira em torno dos outros, sentir-se culpado é muito fácil e também perigoso, justamente porque vai se tornando cada vez mais fácil. Uma simples decepção pode ruir todo o castelo de cartas que você com muito custo equilibrou dentro da sua cabeça.

Foi imerso nesse tipo de reflexão que eu decidi revisitar o livro “Últimos Dias”, lançado em setembro de 2016 na plataforma Amazon KDP e posteriormente no Wattpad.

#ImagemAcessível: Capa do livro “Últimos Dias”, de Roberta Sell. Uma silhueta masculina, feita de jornal, enfrente uma silhueta feminina, feita de papel em branco. Fundo preto, com barras de ferro e teclas de máquina de escrever sobrepostas.

Afirmo sem medo que foi uma das melhores leituras do ano passado e ter relido agora, após quase um ano, foi um experiência totalmente diferente. Como eu já sabia das principais revelações do enredo (e não é muito difícil adivinhá-las ainda na primeira leitura, se você for mais atento do que eu), pensei que reler o livro seria tedioso, mas eu senti que precisava.

Então eu reli, e não me arrependo.

Roberta Sell é uma autora independente que lança seus livros em formato digital nas plataformas Amazon e Wattpad. Dela, eu já li diversos contos e, claro, este romance que resenho agora.

A história se passa no estado do Texas, bem na fronteira dos EUA com o México. Há uma explicação, entretanto, para essa escolha de cenário e ambientação. É que “Últimos Dias” narra duas histórias em paralelo: a do ex-campeão de rodeios Ethan Lewis e a da repórter recém-formada Maria Santiago. Ele foi condenado à pena de morte pelo assassinato de uma imigrante ilegal, em um crime bárbaro e aparentemente motivado por racismo e xenofobia. Ela é uma jovem descendente de mexicanos que com muito esforço está ascendendo profissionalmente. Se estabelece aqui o primeiro eixo de tensão do livro.

A prisão desse astro foi o maior acontecimento da época e repercutiu nacionalmente. Muitas foram as tentativas dos jornais de conseguir uma entrevista e ouvir sua versão dos fatos e muitas foram as recusas do homem, o que lhe conferiu o apelido midiático de “Silencioso”. Após o julgamento, o advogado de Ethan inicia uma série de recursos e apelações, de modo a adiar o cumprimento da pena e assim consegue estender o processo por mais de vinte anos.

Acontece que o protagonista parece estar conformado e até mesmo confortável com a ideia de morrer, não é esse seu principal dilema. A história de fato começa quando é estabelecido o dia de sua execução e ele decide que chegou a hora de falar. Numa surpreendente escolha do próprio condenado, Maria Santiago é incumbida de registrar essa história

O que mais me intriga na narrativa de “Últimos Dias” é a dicotomia entre presente e passado. Ethan se tornou uma pessoa completamente vazia, ele não é nada além de uma mera lembrança de quem um dia foi, não inspira medo e nem mesmo respeito. Não falo aqui da glória de ter sido um campeão, pois disso ele não demonstra qualquer traço de saudade. Descobrimos no relato de Ethan que ele já estava condenado há muito tempo, refém das próprias culpas, preso dentro de si. Ele é todo feito de ontem.

Maria, por sua vez, é toda feita de hoje. Ela é uma mulher que pouco viveu e por isso não tem passado pra destrinchar. Poucas são suas experiências de vida e isso, aliado ao papel de repórter novata no jornal local, poderia transformá-la em um personagem raso e sem peso na trama, uma simples necessidade de roteiro, mas logo vemos que não — muito pelo contrário. Maria é forte na medida do que consegue ser e divide brilhantemente o protagonismo com seu interlocutor, sendo tão importante para o decorrer da história quanto ele. Ela é quase uma quebra da quarta parede, uma vez que pode perfeitamente representar o leitor dentro da narrativa. Ela nutre angústias e pensamentos diante do que está descobrindo muito similares ao que nós nutriríamos se estivéssemos em seu lugar.

Duas horas. Tempo em que Maria e Ethan estavam se encarando, se medindo e se conhecendo. Precisariam de muito mais. Talvez não houvesse tempo suficiente para que chegassem ao fundo um do outro. Ficariam perto.

É extremamente difícil comentar o que acontece após o primeiro encontro de Maria e Ethan sem soltar algum spoiler e comprometer a experiência dos futuros leitores, por isso não falarei mais sobre o enredo. O que posso dizer é que “Últimos Dias” é um tratado sobre a culpa, não apenas nessa primeira camada que envolve ser responsabilizado por seus atos criminosos, mas a palavra em sua plena acepção.

Quando o “Silencioso” decide contar sua história pouquíssimos dias antes de sua morte física, um recado muito claro é dado a nós, leitores: ele não consegue viver sem as culpas que alimentou e carregou por tanto tempo e só está pronto para se livrar delas quando vislumbra de perto o fim da própria vida. Viver sem algo que é tão parte sua quanto um órgão é pior do que morrer, e ele escolhe a segunda opção.

O relato de Ethan nos mostra como se firmou a fortíssima relação de dependência dele com as pessoas ao seu redor, os relacionamentos doentios, as perdas irreparáveis, os simulacros de felicidade e, claro, o imenso rastro de culpas deixadas pelo caminho, culpas estas que ele fez questão de recolher e assumir para si, por puro medo de que até isso lhe fosse roubado.

A escrita de Roberta Sell não é poética ou floreada. Ela é crua, do exato jeito que esta história pedia. A autora não nos poupa de um bom choque de realidade e não abre concessões em nome de algo mais palatável. Nós sabemos exatamente como a história vai acabar, é uma trama que não nos dá espaço para sonhar com soluções fáceis que venham a mudar o destino das coisas, assim como a vida.

É uma história pesada e dolorida, sobretudo nos últimos quatro capítulos, quando eu desisti de segurar o choro. Não temos sequer a opção de interromper a leitura. Uma vez iniciada, também nós ficamos presos.

“Últimos Dias” está disponível em formato e-book e à venda na plataforma Amazon KDP por apenas R$ 1,99, mas os assinantes do Kindle Unlimited podem lê-lo gratuitamente. Os primeiros capítulos estão disponíveis para leitura no Wattpad. Todos os links estão disponíveis logo abaixo. Vale a pena conhecer esta obra e as outras da autora.

A prisão não são as grades, e a liberdade não é a rua; existem homens presos na rua e livres na prisão. É uma questão de consciência.

- Mahatma Gandhi

  • Título: Últimos Dias
  • Autora: Roberta Sell
  • Nº de páginas: 181
  • Ano: 2016
  • Onde encontrar: Amazon, Wattpad.

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José Artur Castilho

Leio nas horas que me restam e escrevo sempre que me sinto muito sozinho.