Você não é tudo isso

José Artur Castilho
4 min readAug 16, 2018

Escrevo desde que me entendo por gente. E não, isso não é mera força de expressão. Comecei a desenhar, parei. Artes marciais, parei. Pintura, parei. Webdesign, parei. Artesanato em papel machê, parei. Inventar histórias e contá-las por escrito é a única coisa que eu me mantive fazendo sem pausas desde, sei lá, os meus seis anos. Na infância, preenchi quase dez cadernos brochuras (desses de uma matéria só) com meus brotinhos de livros. Eram histórias sempre curtinhas, de no máximo doze capítulos, que refletem muito bem a criança que eu fui.

#ImagemAcessível: Oito caderninhos do tipo brochura de 48 páginas, ilustrados e pintados com lápis de cor, nos quais eu escrevi à mão os meus primeiros livros infantis.

Em paralelo a isto, eu, obviamente, lia muito. Li mais livros do que consigo contar. A cada livro lido, uma nova ideia vinha me visitar. Conforme eu crescia, as leituras se diversificaram, tornaram-se mais clássicas e complexas, aprendi sobre experimentação formal e, voilá, a arrogância da adolescência já não me permitia escrever os meus livrinhos infantis e simplórios de cachorro falante e gênio da lâmpada.

Foi nessa segunda fase da minha escrita que eu quis escrever um livro gigantesco que se passasse todo num dia só, um texto que rompesse com as convenções do tempo/espaço. Ou então um livro todo narrado pelo ponto de vista de um objeto inanimado. Também quis fazer ficção especulativa de como as coisas seriam se Atlântida não tivesse sumido no oceano e fosse a grande potência colonizadora do novo mundo, rivalizando com a Europa. Uma saga de ficção histórica que compreendia os 100 anos passados entre o início da Era da Borracha na Amazônia e o massacre de El Dorado dos Carajás (me liga, Ken Follet!).

Eu não tenho nenhuma foto desse período por um simples motivo: eu nunca escrevi nenhuma destas histórias. Nunca cheguei perto de finalizar o primeiro capítulo, nunca passei sequer da concepção inicial. Tantas ideias vanguardistas e complexas nunca passaram de um amontoado de escaletas com delírio de grandeza. Ingressei na universidade e, diante da nova e atribulada rotina, eu percebi que, embora ainda escrevesse com periodicidade, não me sentia capaz finalizar um mísero texto, qualquer que fosse.

Culpei, num primeiro momento, os diversos afazeres do meu curso. Culpei os estágios simultâneos, a complicadíssima disciplina de evolução e anatomia dos vertebrados, a cadeira de botânica que eu reprovei e precisei cursar de novo em outro turno, as viagens de campo, a pressão familiar… Culpei a todos, exceto a mim mesmo. Só eu sabia que eu ainda sacrificava a madrugada para tentar escrever um pouquinho todos os dias. E digo “tentar” porque nada de fato saía dali. Continuei tentando ressignificar o mundo a partir da minha literatura inexistente. Continuei fantasiando as entrevistas que eu concederia e as análises aprofundadas que mestres e doutores fariam da minha obra.

#ImagemAcessível: Captura de tela de um tweet antigo da Anitta, que diz “uhuuuuuuuuuuuuulll… vai que é tua lixo humano”

Minha relação com as letras sempre foi um tanto intensa. Em certo momento, os livros deixaram de me contemplar e passaram a me seduzir. Ler um livro tornou-se um misto de inveja com encanto. Parei de ler durante quase um ano, com a desculpa de não me deixar influenciar. Grande mentira.

Talvez os meus privilégios sociais tenham me feito acreditar que eu teria um futuro grandioso sem ter de fazer muito esforço pra isso. Apesar da infância pobre, nunca precisei provar minha inteligência ou minha inocência a ninguém. E isso muda tudo.

Hoje sei que a vaidade é um bichinho que se aproveita dos nossos vazios pra colonizar tudo, igual larva de mosca. Não que eu já tenha me livrado totalmente dela, pois ainda me surpreendo a pensar nos prêmios que eu nunca vou conquistar e nos fãs que eu nunca vou ter. Eu diria há alguns meses que a culpa é da Lua em Leão, mas hoje eu sei que a culpa é minha mesmo.

Aprendo aos poucos a enxergar o ofício com um tanto mais de nitidez, mas ainda preciso de me livrar de toda a carne exposta para poder voltar a sentir aquilo que me fazia comprar um caderninho em branco toda vez que eu e minha mãe passávamos perto da papelaria. Só vou escrever quando eu quiser, mas vou escrever ainda mais quando eu não quiser, quando eu não tiver mais escolha, quando eu sentir a necessidade. Então eu poderei contar a única história que só eu posso contar: a minha.

Procuro despir-me do que aprendi

Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,

E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,

Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,

Desembrulhar-me e ser eu…

— Alberto Caeiro

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José Artur Castilho

Leio nas horas que me restam e escrevo sempre que me sinto muito sozinho.